Do alto se via a estrada de chão,
e um verde banhava o resto.
Á direita, um buraco quadrado fundo.
Um pé de vassoura cresceu dentro do buraco.
Na fundura do buraco nasceu um bem-me-quer,
despetalei-os sem pensar.
Á esquerda, a subida ondulava,
No topo a aroeira em V
O coqueiro que nunca deu coco
E a cicatriz que a casa deixou no chão.
A casa desceu a subida,
Passou no passinho,
De perto avistou a cacimba de água fresca
E a clareira á beira da sanga.
A casa escorregou.
Acentou pé lá embaixo.
Despediu-se da aroeira e foi vizinhar com a sanga.
Transbordava sempre a sanga com a enchente de São Miguel,
Setembro.
E lá de dentro se ouvia a conversa marrom das águas em enxurradas.
Na primavera cercavam a casa as florzinhas brancas.
Uma horta grande apequenada
Pessegueiros pesteados
Eucaliptos minguados
Formigas cortadeiras
E uma guajuvira na porteira
Na sala uma floreira
No quarto a janela da casa velha da vó
Na cozinha o velho fogão a lenha, acho que foi da vó.
A frente que se avistava lá do alto
Estava plantada a igreja
De longe em miniatura
A igrejinha de Nossa Senhora.
Deus costumava visita-la em dias de festa,
Na verdade acho que Deus ia só pra ver Nossa Senhora
Sempre tão linda encima do altar
Branca
Triste
E santa.
No Natal sempre montavam um grande e poluído pinheiro.
Tinha encenação.
Ninguém hospedava a mãe de Jesus.
Mas iam todos os domingos na Igreja.
Na Paixão
Andarilhávamos em procissão
Os santos nem se mexiam nas Estações.
O padre dava a hóstia.
A beata carregava a mala do padre.
O padre não tinha sensibilidade,
Não merecia que lhe carregassem a mala.
Voltávamos da missa pela estrada de chão e pedras.
Á beira da estrada pitangas e amoreiras.
Casas á beira da estrada
Valetas á beira da estrada
Vacas pastam e mugem á beira da estrada
Uma família de patos pateia á beira da estrada
Um cachorro se espreguiça, isso ainda á beira da estrada
Um velho senhor descalço capina á beira da estrada
A beira da estrada é forrada de bem-me-queres e marias moles
Uma preá corre e se esconde á beira da estrada
Árvores moram á beira da estrada
Na beirinha da estrada cai a ponte
Embaixo da ponte corre a sanga
Outra sanga
Vacas bebem na sanga a água
A sanga é uma valeta grande e corta no meio a estrada.
Mais adiante não se vê do alto.
Uma tapera.
Árvores de uvas silvestres derramavam frutas sob a estrada.
Limoeiros secos, coitados
E as crianças apanhavam os limões sem piedade.
Comiam com sal.
Saia água da boca.
A tapera também fora desenhada com pés de pereiras.
As pereiras dão peras.
E das peras a mãe faz perada.
A ximia da pêra é a perada.
Os marmeleiros á beira do caminho que levava pra outra sanga dava marmelos.
A mãe fazia marmelada.
O doce do marmelo é a marmelada.
Forrava o chão da tapera um tapete de lírios selvagens e roxos.
As crianças desejavam arranca-los de lá.
Sempre arranjavam desculpas para ir á tapera ver a quantas andava o maduramento dos lírios selvagens.
Os meios eram os mais esfarrapados
Colher vassoura
Buscar gravetos
Colher flores pros vasos vazios da casa
Juntar pedrinhas na sanga
Pedrinhas coloridas
Arredondadas
Em forma de corações
Amarelas
Brancas brilhosas
Pedras comuns
Às vezes uma cobra aparecia na sanga
E varria as crianças de lá.
Corriam
Corriam
Corriam
Corriam
Esbaforidas chegavam em casa
Desasadas
Desarvoradas
Apavoradas
Assustadas
E bem no fundo encantadas.
Cobras cruzeiras
Papapintos
Corais
Cobras verdes
Rabo fino é venenoso.
Se for picado morre.
Tem que amarrar um canto da camisa pra cobra não sair do lugar.
Deve olhar nos olhos dela.
E quem de nós tinha coragem de olhar nos olhos da cobra?
As cobras nos varriam da sanga e
Os Lírios eram selvagens,
Amaduravam quando bem entendiam.
A sanga se tornava perigosa.
A sanga instigava a nossa imaginação,
Atiçava o nosso medo,
Enriquecia nossas histórias,
Fortalecia nossos laços.
As veias da minha infância foram regadas por sangas.
Sangas rasas, sangas fundas.
Sangas calmas e nervosas
Sangas claras e sangas sujas
Sangas boas e perigosas.
24 de abril de 2008
Na varanda velha da casa
Adormecera um poço raso
Em cima do poço a mãe depositava baldes de água que trazia da cacimba
O poço estava cansado,
Não nos dava mais água.
Sobrevoavam os baldes os terríveis marimbondos
Uns pretos
Uns marrons avermelhados
Depois das cobras e das mamangavas
Esses eram os bichos mais temidos por mim
Até que um dia fui beijada por um deles.
A picada era tão de leve que virou um beijo,
Ficou vermelhinho no lugar
Inchou
A mãe colocou vinagre e sal
Desinchou
Desavermelhou
Desbeijou
A mãe não teve a mesma sorte
Não foi agraciada por beijos de marimbondos.
Um dia ela subiu no pessegueiro mais altivo do arvoredo,
Este pessegueiro era o Rei do arvoredo.
Florescia umas flores rosas pequenas por demais delicadas e
Dava vida a uns pêssegos bem grandes e amarelos e vermelhos por dentro.
Cada um que chegava a mãe apresentava seu mais bonito pessegueiro.
Um dia ela resolveu colher uns frutos
Pra fazer uma pessegada.
A pessegada é a ximia do pêssego.
Quando chegou lá encima,
No galho mais alto e comprido
Naquele que mais tinha pêssegos de ouro
Ela foi atacada por um enxame de marimbondos
Eles picaram a mãe coitada bem dentro do seu nariz
Lembro que ela escorregou do galho com o nariz inchado e avermelhado
Os olhos diminuíram curiosamente
A mãe não colheu os pêssegos.
Acho que o Rei do arvoredo ficou zangado com a mãe.
Ela achou melhor deixar com que os frutos amadurassem e caíssem
Quando o chão estivesse forrado de um lindo tapete amarelo
Ela se arriscava a junta-los,
Coitada.
Antes de eu ser gente
Fomos morar na casa velha da vó
Branca
Grande
Três quartos
Sala vazia
Cozinha com fogão a lenha
Varanda com poço adormecido
E um grande quarto de banho...cheio de sapos.
Os sapos eram muitos e
Verdes.
Nos cantos cantavam meio desafinadas as rãs.
O chuveiro era de lata.
Num dos cantos uma caixa de papel com uma galinha garnizé chocando ovo.
Eu tinha medo de sapos,
Mas eles gostavam de mim e eu não sabia.
Que pena!
Não aproveitei do aconchego gosmento e frio de suas companhias
Não apreciei com sensibilidade o canto mesmo que desafinado das rãs
Não consegui ouvir os desejos delas
Não aplaudi os saltos loucos das pererecas
Não assisti o show que me preparavam todas as noites
Como pude ser tão rude com os sapos da minha infância?
Hoje descobri o tamanho da generosidade daqueles bichos
Mesmo que eu os tenha
Desprezado
Desvalorizado
Desacompanhado
Desassistido
Desaplaudido
Desouvido
E
Desgostado
Eles num ato de amor imenso por mim me acompanham até hoje em sonhos.
Mas como são sapos
E não sabem distinguir certas coisas das outras
Eles transitam entre meus sonhos e meus pesadelos.
E continuam verdes, frios e gosmentos, queridos.
A casa da vó era vista de longe e do alto.
Atravessava a porteira,
Passava o passinho,
Subia a subida,
Costeava o pé de umbu e chegava bem na frente da casa.
Duas janelas grandes e uma porta larga ornavam a fachada da casa.
Contornava a casa uma calçada comum, alta e perigosa.
O que descomunizava a calçada eram as flores que a vó plantara antes de partir.
Do lado direito da casa e bem nos pés da calçada nascera uma flor rosa
Não era uma só
Era um bando de flores rosas
A coisa mais linda que eu já vi.
Eram de um perfume tão doce,
Acho que herdaram do jeito da vó.
Delicadas
Sensíveis
Meigas
Claras
Leves
Rosas
Frágeis
Fortes
Bonitas
Encantadoras
E herdaram tudo da minha vó.
Não bastasse este tesouro plantado a direita da casa,
Na frente dois pés de Primavera perfumavam o ar.
Brancas
Roxas
Rosas
Lilázinhas
Espirravam um cheiro bom e embriagador.
Eu me sentava pra brincar entre as duas Primaveras.
Não bastasse a beleza e o poder das Primaveras
A frente da casa era colorida por pares e pares de lírios vermelhos
De par em par
Com pequenas hastes no centro
Tinha gosma no seu caule.
O tio não gostava que arrancasse.
Ele adorava flores.
Essas especialmente deviam trazer a lembrança da vó.
O tio amava a vó, sentia falta.
Esse tio era o mais bem desenhado de todos
Seu desenho tinha uma parte colorida e outra não
Na parte colorida tinha
Arte
Poesias
Gaita de fole
Era gaiteiro bonito e galanteador
Namoradinhas
Várias namoradinhas, todas das mesmas famílias
Cavalos
Bailes
Amigos
Festas
Traje novo
Cabelo penteado
Carinho guardado
Amor encerrado
E muito mais.
Na parte escura do desenho eu via
A partida da vó
A notícia
O baile interrompido
A tristeza bonita
Um amor não deixado
Um amor que ficou guardado
Trancafiado no peito
O peito não agüentava
O peito chorava
E a amada partira nos braços de outro
O tio era lindo e bebia como um passarinho
Gota por gota sentia
Não sei o que elas diziam
Não sei o que elas aliviavam
Não sei se com elas esquecia
Não sei se com elas melhorava.
O tio comia cebola como ninguém.
Ninguém faz música comendo rodelas de cebola como ele
E isso era fascinante
O som que vinha do namoro entre os dentes e as rodelas de cebola era bonito de ouvir.
Ele as devorava
E aquele era o barulho mais sonoro,
Mais afinado,
Mais melódico,
Mais nobre,
Mais extasiante que ouvi na minha infância.
O tio fez uma viagem pro céu e ainda não voltou.
A caminho da viagem veio se despedir de mim
Com um afago me fez dormir
E partiu.
Esqueceu de levar a gaita,
E deve ter se entretido a namorar com as estrelas.
Dizem que as estrelas são ciumentas,
Não devem deixa-lo vir
As vezes aparece em sonhos e logo é hora de partir.
25 abril de 2008
15 de dez. de 2008
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